sexta-feira, 1 de setembro de 2017


Educação

O diálogo interdisciplinar na  poética  de Marco Lucchesi ou a estética do labirinto/ Parte I

 

Por Ana Maria Haddad Baptista

 

Advertências preliminares 
           
            Mergulhar, da superfície à profundidade, no conjunto de obras do poeta, romancista, ensaísta, tradutor, Marco Lucchesi, é um desafio tão arriscado  quanto pular do último degrau da Torre de Babel. ("Do abismo para o abismo"[1]). Desabar em um labirinto, que como tal, não possui, matematicamente, nenhuma invariável. (Regido exclusivamente por variáveis em espaços de indeterminação.) Desvendar "um homem solitário diante de sua dolorosa solidão" [2] e temporalidades (meio-dia?).
            Lucchesi possui um   conjunto extenso de obras. De uma pluralidade onde o conceito de gênero e interdisciplinaridade, uma vez mais, deveriam ser repensados seriamente. Ensaios, poemas, romances, traduções e projetos experimentais (tão bem conceituados por Haroldo de Campos). Labiríntico,  o percurso poético de Lucchesi não se perfaz em linhas de sucessões, mas por cintilações desestabilizadoras. Não há uma direção a seguir. Estética do labirinto. ("Onde é o começo? É alguém ou alguma coisa que começa?" [3]). Desdobra-se sob o fascínio do surpreendente.  E quando o leitor pensa que encontrou a saída é mobilizado por ressonâncias.  Isto é, "o anterior e posterior, o inacabamento e o incomeço que pertencem por essência à ressonância" [4].  
            O leitor, inclusive, há de  encarar a sedução  proposta por Sartre: "o escritor sabe que fala a liberdades atoladas, mascaradas, indisponíveis; sua própria liberdade não é assim tão pura, é preciso que ele a limpe; é também para limpá-la que ele escreve" [5].  Lucchesi compreende  a formulação poética enquanto um pensamento que se deve dizer. Mas não desenvolver. O inacabado.  Nessa perspectiva, para o autor, "poesia e literatura não suportam a insistência de uma significação ou de um conjunto de significações já constituídos e organizando-se pela coerência de um discurso unicamente lógico", como tão bem adverte Blanchot. Um dos maiores exemplos disso, no conjunto das obras de Lucchesi, é o alto experimentalismo na obra Rudimentos da Língua Laputar:  "Trata-se de uma língua perdida, que procurei, como paciente e desesperado arqueólogo, trazer de volta a nossos dias, na medida de minhas forças, apesar dos inúmeros entraves criados pela mistificação do livro Gulliver's Travels [6].
            Enfim, a poética  de Marco Lucchesi é uma espécie de prova, quase definitiva, de que literatura, acima de tudo, não se faz apenas com ideias vagas e pensamentos dispersos. Ou seja, as famosas afirmações, sempre esgarçadas, de lugar comum, que banalizam o rigor da verdadeira literatura e  subtraem a responsabilidade irrestrita de quem tomou para si desvendar os grandes mistérios que regem, não somente, o Universo. Eis uma literatura que dialoga, tranquilamente, com a História, Filosofia, Matemática, Astronomia, Física e outras áreas do conhecimento. Subjaz em todo seu diálogo poético interdisciplinar a compreensão de  que,  (especialmente com Octavio Paz, Gaston Bachelard, Gilles Deleuze e Ernesto Sabato), para os poetas existem zonas de realidade não apreensíveis pela racionalidade. "Prefiro o céu de Blanqui, mil vezes superior ao esquálido sistema positivo (...) aposto na beleza das janelas diante do infinito" [7].  Além disso, Lucchesi estabelece (em muitas obras)  o diálogo, essencial e fundamental, entre Ocidente e Oriente como demonstram sua belas traduções advindas do romeno, italiano, árabe, persa,  somente para ficarmos com alguns exemplos, como no seguinte fragmento de poema (traduzido por Lucchesi) de  Rûmî [8]:

O que fazer, se não me reconheço?
Não sou cristão, judeu ou muçulmano.

Se já não sou do Ocidente ou do Oriente;
não sou das minas, da Terra ou do céu.

Não sou feito de terra, ar ou fogo;
não sou do Empíreo, do Ser ou da Essência.

Nem da China, da Índia, ou Saxônia,
da Bulgária, do Iraque ou Hurassân.

Não sou do paraíso ou deste mundo,
não sou de Adão e Eva, nem do Hades.

O meu lugar é sempre o não lugar,
não sou do corpo, da alma, sou do Amado.

O mundo é apenas Um, venci o Dois.
Sigo a cantar e a buscar sempre o Um.


Observação importante: Este texto foi publicado na Revista (impressa) Filosofia de no. 129 da Editora Escala. 
  


[1] Marco Lucchesi, Teatro Alquímico, p. 93.
[2] Idem, p. 15.
[3] Maurice Blanchot, Uma voz vinda de outro lugar, p.31.
[4] Jean-Luc Nancy, Demanda, p. 80.
[5] Que é a literatura?, p. 60.
[6] Marco Lucchesi, Rudimentos da Língua Laputar, p. 9.
[7] Marco Lucchesi, O Dom do Crime, p. 11.
[8] A Flauta e a Lua, p. 22.

Nenhum comentário:

Postar um comentário